A imprensa que estupra

29/05/2012

Por Eliane Brum, da Época


– Não estuprou, mas queria estuprar!

A frase foi dita pela repórter Mirella Cunha, no programa "Brasil
Urgente", da Band da Bahia, a um jovem de 18 anos, preso em uma
delegacia desde 31 de março. Algemado, ele diz que arrancou o celular
e a corrente de ouro de uma mulher, mas repete que não a estuprou. Na
reportagem, a jornalista o chama de "estuprador". Pergunta se a marca
que ele tem no rosto é resultado de um tiro. Ele responde que foi
espancado. A repórter não estranha que um homem detido, sob
responsabilidade do Estado, tenha marcas de tortura. O suspeito diz
que fará todos os exames necessários para que seja provado que ele não
estuprou a mulher. Ele não sabe o nome do exame, não sabe o que é
"corpo de delito" e pronuncia uma palavra inexistente. Ela debocha e
repete a pergunta para expô-lo ao ridículo. Ele então pronuncia uma
palavra semelhante à "próstata". A jornalista o faz repetir várias
vezes o nome do exame para que ela e os telespectadores possam rir.
Depois, pergunta se ele gosta de fazer exame de próstata. No estúdio,
o apresentador Uziel Bueno diz: "Tá chorando? Você não fez o exame de
próstata. Senão, meu irmão, você ia chorar. É metido a estuprador, é?
É metido a estuprador? É o seguinte. Nas horas vagas eu sou
urologista...".


A chamada da reportagem era: "Chororô na delegacia: acusado de estupro
alega inocência". A certa altura, a jornalista olha para a câmera e
diz ao apresentador, rindo:


– Depois, Uziel, você não quer que o vídeo vá pro YouTube...


(Confira a matéria no linque no final deste texto)


O vídeo foi divulgado nas redes sociais, na semana passada, com grande
repercussão e forte pressão por providências. Um grupo de jornalistas
fez uma carta aberta: "A reportagem de Mirella Cunha, no interior da
12ª Delegacia de Itapoã, e os comentários do apresentador Uziel Bueno,
no estúdio da Band, afrontam o artigo 5º da Constituição Federal: 'É
assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral'. E não
faz mal reafirmar que a República Federativa do Brasil tem entre seus
fundamentos 'a dignidade da pessoa humana'. Apesar do clima de
barbárie num conjunto apodrecido de programas policialescos, na Bahia
e no Brasil, os direitos constitucionais são aplicáveis, inclusive aos
suspeitos de crimes tipificados pelo Código Penal".


E, mais adiante: "É importante ressaltar que a responsabilidade dos
abusos não é apenas dos repórteres, mas também dos produtores do
programa, da direção da emissora e de seus anunciantes – e nesta
última categoria se encontra o governo do Estado que, desta maneira,
se torna patrocinador das arbitrariedades praticadas nestes
programas". Em 23/5, o Ministério Público Federal abriu representação
contra a jornalista. Em nota, a Band afirmou que tomaria "todas as
medidas disciplinares necessárias" e que "a postura da repórter fere o
código de ética do jornalismo da emissora".


Em visita ao suspeito, a Defensoria Pública assim o descreveu: "É réu
primário, vive nas ruas desde criança, apesar de ter residência em
Cajazeiras 11. Tem seis irmãos, é analfabeto e já vendeu doces e balas
dentro de ônibus. Ao ser questionado sobre como se sentiu durante a
entrevista, ele diz: 'Eu me senti humilhado, porque ela ficou rindo de
mim o tempo todo. Eu chorei porque sabia que eu iria pagar por algo
que não fiz, e que minha mãe, meus parentes e amigos iriam me ver na
TV como estuprador, e eu sou inocente'".


A reportagem é um exemplo de mau jornalismo do começo ao fim. E, para
completar, ainda presta um desserviço à saúde pública, ao reforçar
todos os clichês e preconceitos relacionados ao exame de próstata. Por
causa dessa mistura de ignorância e machismo, homens demais morrem de
câncer de próstata no País. Os abusos cometidos pela repórter e pelo
apresentador foram tantos, porém, que esse prejuízo passou quase
despercebido.


Por que vale a pena refletir sobre esse episódio? Primeiro, porque ele
está longe de ser uma exceção. Se fosse, estaríamos vivendo em um País
muito melhor. O microfone (e a caneta) tem sido usado no Brasil, assim
como em outros países, também para cometer violências. Nestas imagens,
se observarmos bem, a repórter manipula o microfone como uma arma.
(Outras interpretações, vou reservar para os psicanalistas.)


Muitos passam mal ao assistir ao vídeo porque o que se assiste é uma
violência sem contato físico, sem marcas visíveis. Uma violação
cometida com o microfone e uma câmera, exibida para milhões de
pessoas, contra um homem algemado (e, portanto, indefeso), sob a
responsabilidade do Estado, que, em vez de garantir os direitos do
suspeito, o expõe à violência.


O suspeito é humilhado por algo que deveria ser uma vergonha para o
Estado e para todos nós: a péssima qualidade da educação. E, no caso
dele, o analfabetismo de um jovem de 18 anos no ano de 2012, na "sexta
economia do mundo". Ao afirmar que o rapaz era um estuprador, a
repórter colocou em risco também a vida do suspeito, já que todos
sabem – e muitos toleram – o que acontece dentro das cadeias e prisões
com quem comete um estupro.


A repórter e o apresentador, porém, são apenas a parte mais visível da
rede de violações. Estão longe de serem os únicos responsáveis. Para
que esse caso se torne emblemático e para que a Justiça valha é
preciso que todas as responsabilidades sejam apuradas, a começar pela
do Estado. Tanto em permitir que alguém sob sua custódia fosse exibido
dessa maneira, e possivelmente contra a sua vontade, numa rede de TV,
quanto nas marcas de tortura no seu rosto. As marcas e o relato de
espancamento, aliás, seriam objeto da apuração de qualquer bom
jornalista. No caso, não suscitaram nenhuma surpresa.


Basta ligar a televisão para ter certeza de que nem essa jornalista,
nem esse apresentador, nem essa rede de TV são os únicos a violar
direitos previstos em lei, especialmente contra presos e contra
favelados e moradores das periferias do Brasil. Especialmente,
portanto, contra os mais frágeis e com menos acesso à Justiça. Vale a
pena lembrar que o número de defensores públicos no Brasil é
insuficiente – em São Paulo, por exemplo, segundo relatório feito pela
Pastoral Carcerária Nacional e pelo Instituto Terra, Trabalho e
Cidadania, há apenas 500 defensores públicos para prestar assistência
jurídica à população carente. E quase 60 mil presos que nunca foram
julgados.


Como também sabemos, nenhum jornalista publica ou veicula o que quer.
Para que reportagens como esta tenham espaço é preciso que exista
antes uma estrutura disposta a permitir que os maus profissionais
violem as leis. Em última instância, também quem anuncia seus produtos
em programas que exibem esse tipo de reportagem está sendo conivente e
estimulando a violação de direitos.


A responsabilidade não acaba aí. Nos blogs, onde o vídeo foi
denunciado como uma violação de Direitos Humanos, parte dos
comentários dos leitores pode ser assim resumida: "Ah, mas ele não é
nenhum inocente". Ou: "Queria ver se fosse você que ele tivesse
assaltado". São afirmações estúpidas, mas elas ajudam a explicar por
que esse tipo de abordagem tem audiência. Persiste ainda no Brasil uma
ideia de condenação sem julgamento – e o linchamento público, via TV,
é uma das formas mais apreciadas de exercer a barbárie. Até porque,
dessa forma, ninguém precisa sujar as mãos de sangue.
É preciso, porém, lembrar o óbvio: até ser julgado, um suspeito é um
suspeito. E só o ritual da Justiça poderá dizer se ele é culpado ou
inocente. E, mesmo culpado, ele vai cumprir a pena determinada pela
lei, mas continuará a ter direitos. E esta é uma conquista da
civilização – contra a barbárie.

No início dos anos 90, um colega de jornal, Solano Nascimento (hoje
professor do curso de jornalismo da UnB), que raramente cobria a área
policial, presenciou um agente dar um tapa em um preso. Vários
jornalistas, de outros veículos, testemunharam a cena. Mas só ele
estranhou e denunciou a violência na sua matéria. O fato – o de um
jornalista ter denunciado algo que para muitos era corriqueiro –
causou espanto nas redações. Ainda assim, a polícia foi obrigada a
abrir uma sindicância.



Uma pesquisa realizada em 2009 por Marcos Rolim, Luiz Eduardo Soares e
Silvia Ramos com profissionais de segurança pública mostrou que 20,5%
dos quase 65 mil policiais que responderam ao questionário – 1 em cada
5 – afirmaram ter sofrido torturas em seu processo de formação. O
curioso é que a cultura de violência também se fazia presente na
formação dos repórteres de polícia, ainda que em proporções mais
amenas. Uma espécie de "batismo de sangue" (no caso, sangue alheio)
era motivo de orgulho e até de certa superioridade diante dos
"frouxos" de outras editorias. Posso afirmar que isso persistiu até
pelo menos a década de 90 – mas há motivos para supor que ainda exista
em algumas regiões do País.


Entre os jornalistas, a iniciação era feita de várias maneiras. Uma
repórter contou que, em seu primeiro dia de trabalho, foi escoltada
das 7h às 21h por um jornalista veterano, com um revólver calibre 38
na cintura (era a década de 80 e o "três-oitão" ainda vivia momentos
de glória). Nestas 14 horas ininterruptas, eles acompanharam todas as
mortes ocorridas na cidade – não só os assassinatos, mas também os
suicídios. O veterano obrigou a "foca" a examinar os cadáveres,
verificar o que havia nos bolsos, apalpar os "presuntos", como ele
chamava. Ao final do processo de violação dos corpos, ela tinha de
relatar o número de buracos de bala e de perfurações de faca, sob os
olhos cúmplices dos policiais responsáveis pela investigação.


Nos deslocamentos entre um morto e outro, o veterano contava sobre
como gostava de torturar "vagabundos" e lamentava o fim da ditadura.
Quando a noite chegou, ele a levou ao plantão de polícia do
pronto-socorro público. Lá ela viu uma mulher chegar gritando e
chorando, com o corpo todo esfaqueado e o sangue saindo por todos os
furos. Pela mão, a mulher levava um menino com cerca de cinco ou seis
anos. Quando a jovem repórter viu os olhos do menino, deu alguns
passos e desmaiou no corredor do hospital. Quando acordou, descobriu
que tinha urinado na roupa durante o desmaio.


O veterano a levou para casa no carro do jornal e, ao descobrir que
ela morava sozinha, impôs sua autoridade para deixá-lo entrar, com a
justificativa de que era sua responsabilidade profissional ter certeza
de que ela, uma subordinada, ficaria bem. Enquanto a jornalista tomava
banho, ele revistou a sua casa. Nada pior aconteceu porque ela
arranjou um jeito de dizer que o sogro era professor universitário e a
família do namorado deveria estar preocupada com o seu atraso. Por
muitos meses ela sentiu-se violentada e não conseguia dormir sozinha
em casa. Trocou as fechaduras da porta, lavou todas as suas roupas,
porque o veterano repórter de polícia as tinha tocado, e botou fora
tudo aquilo que não era documento, inclusive seus bichos de pelúcia.


Assim eram as coisas há não tanto tempo atrás. E acredito que ainda
sejam em algumas redações do País. A reportagem que gerou a polêmica
não é um episódio isolado. Assim como a teia de responsáveis é ampla e
não se restringe à repórter e ao apresentador. E, por fim, a realidade
a que assistimos hoje é parte de um processo histórico da imprensa
brasileira, com capítulos ainda obscuros. Basta lembrar que conhecemos
os nomes dos torturadores e dos legistas que assinavam os laudos
falsos da ditadura, mas desconhecemos o nome dos jornalistas que foram
cúmplices do regime também nos porões da repressão.


Uma linha de investigação interessante para um livro ou uma pesquisa
acadêmica seria entender como a cultura da violência e a relação de
promiscuidade de parte dos jornalistas de polícia com os aparatos de
repressão da ditadura manteve-se e encontrou novas expressões a partir
da retomada da democracia. Uma dessas expressões são os programas
considerados sensacionalistas, mas com grande audiência, com
reportagens como a que agora discutimos.


Estabelece-se no País a tolerância à violação dos direitos dos presos
e dos pobres, mesmo na democracia – bastando apenas fazer uma careta e
dizer que os programas são "sensacionalistas". Os "esclarecidos" dizem
que não assistem "a esse lixo" – e isso seria suficiente. O
"jornalismo sério" considera-se separado da ralé – e isso seria
suficiente. Na prática, sabemos que, na guerra pela audiência, cada
vez mais acirrada, a contaminação entre o jornalismo "sério" e o
"sensacionalista" é crescente e estimulada. E, mesmo na imprensa
considerada séria, parte dos jornalistas que cobrem a área, como se
diz no jargão, continua "comendo na mão da polícia". E não é uma parte
tão pequena assim.


Qual é a novidade? A grande – e boa – novidade é a capacidade de
mobilização e de pressão pelas redes sociais. Até não muito tempo
atrás, duvido que a apuração da responsabilidade de jornalistas como
os do vídeo fosse sequer cogitada. Alertado por Fabrício Ramos, pelo
Facebook, o vídeo foi postado em 21/5 no blog de Renato Roval. Em
menos de 24 horas foi replicado em centenas de blogs e disseminado
pelo Twitter, ganhando repercussão nacional.


Se estamos discutindo esse episódio aqui é porque as pessoas estão
usando a internet para exercer sua cidadania e se responsabilizar pela
democracia, que vai muito além do voto. Usando os instrumentos da
internet para exercer pressão legítima, forçando a quebra do
corporativismo, o funcionamento das instituições e o cumprimento das
leis. Não me parece que nos faltem leis – o que nos falta é justiça.
E, para a parte mais frágil da população, acesso à Justiça.


Na semana passada, os responsáveis pela condenação e humilhação
públicas de um suspeito negro, pobre e analfabeto descobriram que os
jornalistas não estão acima da lei. Enfim, uma boa notícia.


Assista à matéria da repórter Mirella Cunha, no programa "Brasil
Urgente", da Band da Bahia: http://www.youtube.com/watch?v=F6VCbJHtzdc

Fonte: http://www.sina.org.br/turbulencia/#

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