João Fellet
Enviado especial da BBC Brasil à região de Ribeirão
Preto
Atualizado
em 20 de dezembro, 2013 - 07:50 (Brasília) 09:50 GMT
Foi só quando deixou o aeroporto de
Guarulhos, após desembarcar de um voo vindo de Angola, que o operário
brasileiro José Edval da Silva se sentiu aliviado.
Terminava ali um pesadelo iniciado três meses
antes, quando, em agosto de 2012, ele aceitara um convite para trabalhar numa
das maiores obras da empreiteira brasileira Odebrecht em Angola: a construção
da usina Biocom, primeira unidade de produção de açúcar, etanol e eletricidade
do país africano.
A proposta – feita pela empresa W Líder,
subcontratada da Odebrecht na usina – atraiu-lhe pelo salário, o dobro do que
ganhava no Brasil. No canteiro de obras, porém, ele diz ter vivido "o
inferno na Terra".
Com crises de vômito e diarreia, o operário
afirma ter perdido 16 dos seus 90 quilos em um mês. O motivo de seu mal-estar,
segundo ele, eram a falta de higiene do local e a baixa qualidade da comida.
"Só de sentir o cheiro dava nojo", conta.
Relatos de outros ex-operários brasileiros da
mesma obra dados à BBC Brasil reforçam o quadro de falta de higiene,
mencionando a presença de ratos e baratas em refeitórios e que eram, muitas
vezes, obrigados a "defecar no mato". Outros contraíram malária e
febre tifoide, doenças cuja incidência pode ser reduzida com medidas de
prevenção.
Denúncias sobre as condições na usina e sobre o
descumprimento de acordos trabalhistas têm motivado dezenas de ações contra a
Odebrecht e suas subcontratadas na usina Biocom. Tanto a empreiteira quanto as
subcontratadas negam as más condições de trabalho em Angola, alegando que
atendem às determinações da lei.
O que as empresas dizem sobre o assunto, acesse http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/12/131220_empresas_angola_rg.shtml
oa parte dos processos tramita na Justiça
trabalhista do interior de São Paulo, onde as empresas recrutaram muitos dos
operários enviados a Angola. Só em Araraquara, o advogado José Maria Campos
Freitas diz conduzir ações de 60 ex-funcionários da obra.
"Por muitos
anos, a África abasteceu o mercado de escravos no Brasil. Agora vemos essa rota
acontecer no sentido inverso"
José Maria Campos Freitas, advogado que conduz
ações de 60 ex-funcionários da Odebrecht
Freitas afirma que, embora recebessem salários
acima da média no Brasil, seus clientes foram vítimas de cárcere privado e
"trabalho análogo à escravidão" em Angola. "Por muitos anos, a
África abasteceu o mercado de escravos no Brasil. Agora vemos essa rota
acontecer no sentido inverso", diz.
A Justiça tem determinado que os trabalhadores
sejam indenizados. Em decisão recente numa ação movida pelo operário Dilmar
Messias da Silva, o juiz federal do trabalho Carlos Alberto Frigieri diz que o
empregador "não preparou o ambiente de trabalho para o significativo
número de trabalhadores que transportou para Angola, deixando de proporcionar
condições mínimas de higiene, tornando o trabalho mais penoso e
degradante".
Ele condenou a Odebrecht e a Pirâmide,
empregadora do operário, a indenizá-lo em R$ 30 mil por danos morais e horas
extras não pagas.
As empresas, que negam haver qualquer
irregularidade na obra, recorreram da decisão e de todas as outras condenações.
A defesa dos trabalhadores também tem recorrido para aumentar o valor das
compensações.
Os recursos serão analisados pelo Tribunal
Regional do Trabalho da 15ª Região, em Campinas.
A BBC Brasil entrevistou, além de José Edval da
Silva, outros oito operários que integraram a equipe de 1.800 funcionários da
usina Biocom. Todos – inclusive alguns que não entraram na Justiça contra os
ex-empregadores – disseram ter enfrentado as mesmas condições relatadas por
Silva.
Eles afirmam que, entre 2011 e o fim de 2012, os
trabalhadores bebiam água não potável, ratos e baratas circulavam pelo
refeitório, e, como boa parte dos banheiros vivia interditada, muitos defecavam
"no mato". Fotos cedidas à reportagem endossam os relatos.
A única alternativa à comida do refeitório, dizem
eles, eram os biscoitos e enlatados que um supervisor da obra conhecido como
Carlinhos vendia num mercado informal ali dentro, a preços abusivos.
Sair da obra - ou mesmo "fugir", como
ponderou um operário à BBC Brasil - estava fora de cogitação: eles dizem que
superiores retinham seus passaportes pouco após a chegada à obra, alegando que
dariam entrada em seus vistos de trabalho.
Muitos dizem ter passado meses sem o passaporte.
Sem o documento, eles corriam constante risco de ser alvo de achaques policiais
ou até de prisão se deixassem a usina por conta própria.
Os que queriam voltar e pediam o passaporte de
volta, não o recebiam. Nem mesmo o passaporte de alguns que adoeciam gravemente
e tinham de voltar às pressas era devolvido; estes voltavam com salvo-condutos
da embaixada brasileira em Luanda.
Trabalhadores afirmaram que água fornecida por
empresa era contaminada
Segundo os operários, muitos se adoentavam e não
conseguiam cumprir o esquema de trabalho acordado, de jornadas de domingo a
domingo, sem folgas. E mesmo quando alguns adoeciam gravemente, eles dizem que
os patrões só autorizavam a volta quando corriam o risco de morrer.
O operário Evaldo Barbosa Araújo – também levado
à obra pela W Líder – diz ter passado 40 dias de cama, afastado dos trabalhos,
até voltar ao Brasil. Nesse período, diz ter sido diagnosticado, ao mesmo
tempo, com malária e febre tifoide, duas doenças endêmicas na região.
O caldeireiro Rafael Rocha Gomes conta que, para
pressionar os patrões a acatar seu desejo de voltar prontamente, um colega
"saiu quebrando tudo".
"Puseram ele no avião no dia seguinte",
afirma.
Mortes e acidentes
Ao custo de quase R$ 1 bilhão e em construção
numa área desabitada da província de Malanje, o complexo industrial Biocom é
uma sociedade entre a Odebrecht (40%), a angolana Damer (40%) e a estatal
petrolífera Sonangol (20%).
A legislação angolana obriga empresas
estrangeiras a se associar com grupos locais em investimentos no setor de
biocombustíveis. Para erguer o complexo, foram contratadas empresas do interior
de São Paulo, base das indústrias de açúcar e etanol no Brasil.
Além de operários da W Líder, a BBC Brasil
entrevistou trabalhadores levados à obra pelas empresas Pirâmide e Planusi.
Embora o empreendimento tenha sócios angolanos,
os operários dizem que a condução da obra está a cargo das empresas
brasileiras, que atuam sob a supervisão da Odebrecht, a maior empregadora
privada de Angola.
A construção conta, no entanto, com operários
brasileiros e angolanos.
Três desses trabalhadores morreram desde 2012.
Dois deles, os angolanos Eduardo Cabanga e José de Carvalho Rosa, se
acidentaram na obra. A Biocom diz que eles não seguiram normas de segurança.
Já as causas da morte do terceiro operário, o
brasileiro Donizetti Francisco Fernandes, que atuava como coordenador da
Planusi, são objeto de grande controvérsia.
O corpo de Fernandes, de 55 anos, foi encontrado
coberto por queimaduras em 19 de maio em Malanje, cidade a 80 quilômetros da
usina. Entre os operários, conta-se que ele foi amarrado e teve o corpo
incendiado após uma briga.
Segundo a Biocom, porém, uma investigação
policial revelou que Fernandes morreu por causa de "queimaduras diversas
após um curto-circuito da geladeira, que provocou um incêndio nas instalações
onde se encontrava", fora das instalações da indústria, quando ele estava
de folga.
Uma cópia do atestado de óbito enviado à
reportagem aponta somente o termo "queimaduras" como causa da morte.
Parentes e amigos do operário que não quiseram
ser identificados disseram à BBC Brasil que a versão da empresa jamais os
convenceu. Seu corpo, trazido ao Brasil em 30 de maio, foi enterrado em Sertãozinho
(SP).
A Biocom diz ter comunicado a embaixada
brasileira em Angola sobre a morte. O Itamaraty afirmou, porém, que não tomou
conhecimento do caso nem das denúncias de irregularidades na usina. O
Ministério do Interior de Angola e a embaixada angolana no Brasil não
responderam os questionamentos da reportagem sobre esses temas.
Quarentena no Brasil
Para alguns trabalhadores, nem mesmo a volta ao
Brasil pôs fim às provações. Sede da Pirâmide, a pequena Américo Brasiliense
(SP) recebeu no fim de 2012 uma leva de 60 trabalhadores egressos de Angola.
A enfermeira Neiva Matarucco, que à época
trabalhava na Vigilância Epidemiológica do município, diz que eles chegaram
bastante debilitados, com forte diarreia. Havia suspeitas de que parte do grupo
estivesse com febre tifoide, doença contagiosa transmitida pelo consumo de água
ou alimentos contaminados. Matarucco disse que em alguns casos a suspeita foi
confirmada, mas ela não soube precisar quantos.
Enquanto eram tratados, a Pirâmide os hospedou
num hotel da cidade. Ao tomar conhecimento do estado de saúde dos hóspedes, porém,
o dono do hotel os expulsou e mandou desinfetar o edifício.
A empresa os transferiu, então, para uma casa
alugada, onde ficaram até melhorar. O isolamento durou cerca de 40 dias. Após
esse episódio, os operários dizem que as empresas melhoraram as instalações e a
qualidade da água e da comida na usina.
'Problemas pontuais'
Questionada sobre as denúncias, a Odebrecht disse
que a Biocom se posicionaria em seu nome. A Biocom e a Pirâmide enviaram
fotografias em que o refeitório e os alojamentos aparentam boas condições.
Todas as empresas citadas na reportagem dizem que
as instalações e condições de trabalho na usina atendem às legislações
brasileira e angolana. As companhias negam as acusações de cárcere privado e
afirmam que os seus funcionários visitam cidades próximas com frequência.
Dizem ainda que a qualidade da comida é objeto de
análises constantes e que todos os empregados foram atendidos ao pedir para
voltar ao Brasil. Segundo a Pirâmide, "alguns tiveram de aguardar durante
alguns dias para verificação da disponibilidade da passagem e obtenção da
documentação necessária para a viagem".
De acordo com as empresas, "problemas
pontuais" nos refeitórios e alojamentos, como alguns decorrentes de
vazamentos no período de chuvas, foram rapidamente sanados.
A Pirâmide diz ainda que vários empregados foram
mais de uma vez a Angola, "o que demonstra que as condições de trabalho
estavam longe de corresponder ao cenário narrado por alguns desses e que, em
termos econômicos, a prestação de serviços no país estrangeiro era
benéfica".
Em decisões recentes, a Justiça admite que as
condições na usina melhoraram neste ano. Numa das sentenças em que condenou as
empresas denunciadas, porém, o juiz Carlos Alberto Frigieri afirma que "as
fotos juntadas pela defesa não refletem as reais condições do início dos
trabalhos, evidenciando apenas que as condições foram posteriormente
melhoradas, por força das próprias ações ajuizadas no Brasil, mas sem o condão
de elidir (eliminar) o prejuízo já sofrido".
Para o operário José Edval da Silva, compensação
alguma o fará esquecer o que passou em Angola. "Peguei trauma até de
viajar de avião".